sábado, 3 de janeiro de 2009

COLEÇÃO CINEMA MARGINAL BRASILEIRO - NO MEIO DA TEMPESTADE

COLEÇÃO CINEMA MARGINAL BRASILEIRO - NO MEIO DA TEMPESTADE

por Inácio Araújo


Os filmes desta coleção não caracterizam um estilo, nem uma corrente. Eles são, no entanto, um documento amplo sobre uma época e um estado de espírito. Estávamos no coração da ditadura – o AI-5, Médici e a tortura. Isso é oque ficou. Para quem estava lá no momento, era um pouco mais. Até 1968 ninguém (salvo quem mexia de fato com política) levara muito a sério o regime militar – no sentido de que se imaginava tudo aquilo transitório. O AI-5 e o que veio depois mostraram que estávamos entrando em uma noite tenebrosa, da qual não se vislumbrava saída.

Era uma situação bastante contraditória para quem crescera nos tempos de JK, aprendera a acreditar no cinema brasileiro a partir do Cinema Novo e havia feito na cabeça uma mistura de Freud com Marx, Nietzsche e Antonin Artaud, irmãos Campos e Oswald de Andrade.

Havia toda uma moral se transformando, e a gente ia se transformando com ela, por paus e por pedras, mas ia. Havia lá longe o Vietnã, e logo ali Cuba, a nos lembrar que era possível combater o colonialismo e construir, enfim, uma nação livre. Tudo nos parecia uma revelação: os passeios no centro da cidade, os primeiros livros de Borges que descobríamos, a Nouvelle Vague, as montagens do Oficina, a maconha.

Eu, que era um alienado da Maria Antonia, da Faculdade de Filosofia, às vezes era convidado à festa de despedida de um semiamigo.Ficava sabendo que ele ia mudar. Mas, se perguntava para onde, a resposta era vaga. Só depois fi cava sabendo que ele sumira para embarcar na luta armada, que só o veria quando tomasse o poder.

É claro que as coisas não podiam mudar inteiramente por causa do AI-5. Nossas leituras e crenças, a vontade de experimentar, continuaram.

O clima que se instaurou era bem outro e bem nauseante. Mas o mundo não parava por causa disso. Havíamos crescido alimentando crenças e esperanças demais, renegando o passado nacional, abraçando com força as incertezas do presente.

Será desse choque que nasceu esse cinema que se chamou underground, ou “marginal”, ou “de invenção” – ou que nome se queira dar? Pode ser. Nem Ezra Pound nem Wilhelm Reich, Godard, Norman Brown, Marcuse ou Jacobson deixariam de existir por causa de um golpe de Estado. Mas criara-se um abismo entre o real e o desejado.

Ninguém deixou de sair à rua, mas agora saía-se com pavor. Ninguém deixou de querer compreender o mundo, mas tinha-se a sensação de que essa compreensão era perfeitamente inútil.

De uma hora para outra, o Cinema Novo começou a parecer obsoleto.

A idéia de “nacional”, tal como era concebida por ele, de repente parecia uma coisa caquética. Em primeiro lugar, embora a chamada Revolução nos parecesse entreguista, ela teve o efeito primeiro de nos levar a desconfi ar de tudo o que parecesse nacional. Nesses idos, circulava um autocolante pregado nos carros, pelos partidários do Regime, que dizia “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Era o sinal evidente de uma fratura muito forte. Não queriam o tipo de amor que tínhamos pelo país. E nós não amávamos quem nos rejeitava.

O desejo construtivo de instaurar um cinema nacional, de institucionalizá-lo, enquanto o Estado se mostrava uma coisa brutalmente repressora, parecia uma insânia. Mário de Andrade tornou-se quase uma besta.

Oswald, sim, era a chave: o iconoclasta, o safado, o antropófago.

Se algo nos podia salvar, era um mergulho na cultura, mas não em uma cultura “de dentro”. Nada de Mário ou de Cinema Novo. Era preciso sair do Brasil, nem que fosse imaginariamente. E como não era possível sair de uma vez, que voltássemos como antropófagos, recosturando as coisas, digerindo influências, restabelecendo nexos. Então, a chanchada passou a interessar bem mais que o Cinema Novo, Mojica bem mais que Nelson Pereira, o Oficina bem mais que o Teatro de Arena.

Mas, no meio de toda essa confusão, que cinema fazer? Não, com certeza, um que falasse da beleza. Tudo apontava para a impossibilidade de ser. Só a TFP parecia gozar de plena liberdade, com seus carolas soltos na rua a reclamar do divórcio. A TFP e uma classe média beneficiária do “milagre econômico”.

A sujeira tornou-se um apanágio. O mundo não era belo. Era injusto, sujo, agressivo. Não será por acaso que, aqui em São Paulo, esse cinema logo se tornou conhecido como Boca do Lixo. Era o lugar onde se faziam filmes, onde as pessoas se reuniam, a rua do Triumpho e imediações.

A zona de prostituição, em suma. Melhor simbolismo, impossível.

O cinema era, como as putas, um renegado do Brasil Grande. Seu mundo não era o da beleza, mas o da agonia, da dor e também da petulância.

Já não se desprezava apenas o passado, mas também o presente.

O bem-fazer, a gramática ajeitada, a luz bem composta não queriam dizer muita coisa. O cinema não era uma arte e sim uma guerrilha contra o bom gosto, o mundo estabelecido, as pessoas bem em sua pele.

Não se compreendia o que queriam dizer esses filmes? Mas se vivíamos em um mundo opaco, por que haveriam os filmes de dizer ascoisas claramente? Havia ali o sentimento de uma tragédia que se vivia todos os dias. Naquela altura, nada parecia mais desprezível que o cinema esteta. Nada mais inútil que as teorias bem-pensantes, queas velhas tentativas de explicar o país. De um modo ou de outro, todo mundo estava perdido e levando pancadas na cabeça (uns mais, outros menos), mas também estava descobrindo o mundo desse modo.

Algum tempo antes, premonitoriamente, Rogério Sganzerla lembrava com seu Luz Vermelha que quem não pode fazer nada, avacalha. Era uma senha para o cinema nacional, para a impotência que se sentia frente aos estrangeiros, aos exibidores, ao mundo em geral.

Mas avacalha com jeito, diga-se. Ninguém queria mais ouvir falar de ligas camponesas, do CPC, do Brasil profundo e rural. Nada disso.

O cerne do país era mesmo urbano. E nesse urbano a figura privilegiada era o banditismo, a contravenção. Se havia uma arte (e em geral não havia, a arte era outra futilidade), então ela seria dessa gente.

Não mais a manifestação coletiva (revolução), mas a revolta individual, frágil, inútil, mas que signifi cava um desejo de viver contra todas as condições objetivas que o mundo propunha, contra o aprisionamento dos desejos, contra a destruição de nossas utopias.

Esse cinema era um uivo cujo tom podia variar. A ideia geral, bem menos: ninguém devia ser pego na armadilha dos códigos, da linguagem estabelecida. Creio que de algum modo todos partilhavam a ideia de Artaud, segundo a qual “sentido dado é sentido morto”. O cinema não era mais representação de um mundo pré-existente, de uma organização das coisas e da linguagem sobretudo, que parecia insuportável.

Daí o gosto pelo fantástico, pelos OVNIs, pela ficção científica, pelos beatniks, pelo Chacrinha com sua tirada definitiva: “Eu não vim para explicar, mas para confundir”.

Esse cinema não veio para explicar. Talvez tenha vindo para confundir, mas com certeza veio como um turbilhão, que não se explicava nem queria se explicar. Deleitava-se em constituir um país secreto, às vezes abjeto, não raro cheio de humor, que parecia nascer daquelas imagens e estabelecer elos que permitiam às pessoas manter-se à tona no meio da borrasca.

Fonte: http://www.lumefilmes.com.br/index.php?pg=show_criticas&id=60

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