sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Homenagem a Anderson

Texto lido antes da exibição do filme Sonhos em homenagem ao nosso amigo Anderson (aluno do 4º período de História da FFPNM) que faleceu no dia 11 desse mês.



Sonhos

Como é essa partida assim, com tanto hotmail, tv de plasma, maconha aí pra tantas outras viagens? Você não pode deixar essa faculdade ridícula, você é um dos nossos novos, dos que nós, veteranos, ex-alunos, intimamente desprezamos pela falta de sabedoria, pela falta de influência, por não saber de nossa gloriosa passagem por aqui. Você deveria ter ficado pra aumentar o prestígio diante de nós, pra nos fortalecer. Pra saber de nossas bebedeiras, das nossas orgias. Como é que este garoto lindo ultrapassa tão cedo o limite máximo? É verdade, existem fronteiras nas nossas viagens, mas você não entenderia isso.
Lembro de três momentos que nos comunicamos de coração aberto. O primeiro, foi quando passei na tua sala, interrompi a aula de um professor qualquer, expliquei o funcionamento do Cineclube AZouganda e, pela maneira libérrima com que me apresentei, o tal professor me censurou e tivemos, eu e o professor, um momento de desentendimento, apesar de minhas explicações claríssimas. Posteriormente a esse acontecimento, nos encontramos numa festa e você, até então um desconhecido, se aproximou de mim. E o que você conhecia de mim era o meu teatro, as minhas incorporações ao passar nas salas munido de recheios românticos. Quando, na festa, você se aproximou de mim pra citar a minha passagem ruidosa na sala de aula, percebi que você era um romântico também. E você se aproximou de mim pra me apoiar, pra elogiar a minha atitude, apesar de não me conhecer, de nunca ter falado comigo.
Comecei a notar a tua presença entre os que assistiam às minhas leituras no Espaço Paulo Freire. A partir de então, você passou a me chamar de “poeta”, quando nos cumprimentávamos. A primeira vez que você me intitulou “poeta” foi no Recife Antigo, numa noite sexta-feira, talvez de carnaval. Nunca digo que sou poeta, até porque, de fato, não escrevo poemas, no máximo digo que escrevo, e o que escrevo é prosa. Mas sei do peso dessa palavra e os mil elogios que você queria lançar sobre a minha figura quando se referia a mim como “poeta”. Não sei se isso se dava ao fato de você não lembrar o meu nome e, para substituir um iminente desconcerto de ocasião, lançava-me um termo genérico, resumo do que você cria ser minha personalidade, minha vida. Isso não risca a importância desse hábito teu criado espontaneamente, pois no lugar de me chamar de “mamão”, “mané”, “frango”, “idiota”, ou qualquer outro nome, você inteligentemente me chamava de poeta.
Outro fato foi durante uma leitura que fazia no Paulo Freire. Você estava lá, interessado, os olhos avermelhados. Enquanto berrava uma letra de uma música do Los Hermanos, você quebrou o distanciamento normal que existe entre o ator e o espectador, ou seja, entre o palco e o público e também berrou na minha cara: - É isso aí! Atitude! Atitude, porra! Você foi o único, de todas as minhas aparições e leituras, você foi o único que manifestou uma compreensão claríssima diante do que eu estava fazendo ali, de saia, no meio do pátio da faculdade, em vez de estar dentro de sala de aula. Você foi o único que o fez de maneira imponente, soberana, rebelde, como cabe a um gênio. E, por isso, eu te amo, apesar de ter partido ainda como um desconhecido meu.
O que foi que aconteceu? O teu corpo esguio e forte, tua beleza de garoto macho, a tua sensibilidade diante desse mundo imbecil e uma vontade de mudança, de revolução tão bela quanto o teu físico. A vida ainda nem tinha chegado, o conhecimento do centro das relações ainda nem era teu, e pulaste da margem, saltaste o limite da margem.
Esta noite, 15 de agosto, a primeira exibição do segundo semestre de 2007 da FFPNM, eu e meus colegas do Cineclube AZouganda dedicamos à figura de Anderson. O filme, “Sonhos” de Akira Kurosawa. Pela partida sem regresso de Anderson, hoje, a beleza está ferida e os sonhos, em mim, em nós, mais belos e mais cheios de vida.


Artur Rogério, 15 de agosto de 2007.

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