Por Maurício Caleiro
No Ocidente, a imagem do cinema indiano esteve por muito tempo associada, sobretudo, à figura do diretor Satyajit Ray (1921-1992), que em 1956 venceria a Palma de Ouro em Cannes com A Canção da Estrada (Pather Panchali, 1955) – primeiro filme da “Trilogia de Apu”, sobre a qual o blog Cine-Filia traz detalhadas informações. Embora seja contemporâneo de outros grandes diretores da chamada “Era de Ouro” do cinema indiano – como Raj Kapoor, Mehboop Khan e Guru Dutt, o “Bergman indiano” -, Ray foi o mais famoso internacionalmente por razões que dizem respeito mais à relação entre festivais de cinema e mercado do que à eventual superioridade de seu inegável e abundante talento (processo semelhante - mas menos assimétrico - ocorreria no Japão, com a fama internacional de Akira Kurosawa em relação às de Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu).
Não deixa de ser uma lástima que tais dinâmicas de reconhecimento público ainda hoje vicejem, pois não são poucos os pesquisadores de cinema – entre os quais me incluo – que consideram Guru Dutt (foto) um dos mestres da sétima arte em todos os tempos e achem simplesmente inacreditável que ele seja, no Ocidente, não apenas desconhecido do grande público mas negligenciado até mesmo por cinéfilos e estudiosos de cinema.
Produtos do ramo mais bem-sucedido do cinema indiano em termos comerciais, os filmes abrigados sob o rótulo "Bolywood", no mais das vezes produções de grande orçamento, obedecem a um sistema industrial altamente profissionalizado. Dos roteiristas aos técnicos no estúdio, da figurinista ao diretor de arte responsável pelos multicoloridos padrões cromáticos, dos coreógrafos aos cantores que dublam os astros nos diversos números musicais que ornam muitos dos filmes, todo o sistema produtivo trabalha em série e de modo praticamente ininterrupto, a realização de um filme sucedendo a de outro, num modelo de produção menos atomizado e de ritmo mais intenso do que o praticado atualmente em Hollywood.
A cereja do bolo desse esquema é, naturalmente, o star-system indiano, já que tradicionalmente no país, de forma ainda mais intensa do que nos Estados Unidos, é o elenco – sobretudo o protagonista masculino – o principal chamariz de público para os filmes. A atual grande estrela das telas indianas é o ator Shah Rukh Khan (ao centro, na foto que encima o texto), 43 anos, que sucedeu o grande ídolo dos anos 70/80 Amitabh Bachchan. Essa mudança significou uma revolução nos padrões estilísticos e temáticos concernentes ao protagonista – tema que debateremos futuramente em outro post.
Diversidade e riqueza cultural
Mas o cinema indiano vai muito além dos mestres de seu período clássico e e da exuberância multicolorida de “Bollywood”: a Índia contra com três grandes centros produtores – Mumbaim, Calcutá e Madras –, que lançam, anualmente, uma média de quase mil filmes. A maioria é falada em Hindi, mas há uma considerável produção em Tamil, Telugu e em Malayalam, e algumas dezenas de títulos falados em Bengali, Kannada, Gurajati e em Marathi. Na verdade, quase todos os 21 idiomas/dialetos falados no país são contemplados com a produção de ao menos um filme por ano.
Cerca de trinta milhões de indianos vão ao cinema diariamente (aproximadamente 3% da população do país) e, na presente década, mais de 9o% das receitas de bilheteria, em média, disseram respeito à produção nacional. Além de hegemônico internamente, o cinema indiano tem mercado cativo no sudeste asiático, no Oriente Médio e em boa parte da África. Durante décadas objeto de culto restrito às comunidades indianas no exterior, vive hoje um processo de popularização no Ocidente – nos EUA, Reino Unido e França destacadamente.
A presença marcante da cultura popular indiana – milenar ou contemporânea -, combinada ao volume de produção e à influência de distintos modelos representacionais, gera um cinema extremamente rico em sua diversidade, com uma forte tradição em termos de documentário, duas grandes escolas ficcionais, características regionais distintas e crescente experimentalismo. Vale a pena conhecer melhor essa filmografia vibrante, que envolve o espectador, seja através do apelo popular produzido pela mistura de gêneros, canções, cores e sensualidade de sua produção mainstream (estas últimas evidenciadas na foto da atriz Kajol, logo acima); pela sinceridade e agudeza dos seus filmes de “temática social”; ou pelo rigor e personalidade de seu “cinema de autor” (aqui, em inglês, uma ótima seleção de títulos para quem deseja se iniciar no cinema indiano, organizada por dois especialistas no tema).
Infelizmente, ainda viceja no Brasil, mesmo em setores soi disant cultos e intelectualizados, uma espécie de versão debochada do Orientalismo de que nos fala Edward Said, traduzida na tendência a apregoar o multiculturalismo da boca pra fora mas continuar torcendo o nariz, ignorando ou folclorizando o que vem do Oriente, sobretudo se se trata de algo popular. Assim, com a exceção de uns poucos iniciados, os cinéfilos brasileiros seguem privados do contato sistemático com uma das mais ricas, originais e diversificadas cinematografias do globo. É mesmo uma pena, sobretudo se pensarmos o quanto o próprio cinema brasileiro teria a ganhar com esse contato.
Fonte: http://cinemaeoutrasartes.blogspot.com